Da pureza das reformas religiosas

Enviado por Estante Virtual em sex, 23/11/2012 - 02:12

Todas as grandes reformas religiosas foram puras em seu início. Os primeiros seguidores de Buddha, assim como os discípulos de Jesus, eram homens da mais alta moralidade. A aversão pelo vício experimentada pelos reformadores de todas as idades está comprovada nos casos de Sâkyamuni, Pitágoras, Platão, Jesus, São Paulo, Amônio Saccas. Os maiores líderes gnósticos - se tiveram menos sucesso - não foram menos virtuosos na prática, nem menos puros moralmente. Marcion, Basilides, Valentino eram famosos por suas vidas ascéticas. Os Nicolaitenses, que, se não pertenciam ao grande corpo dos ofitas, contavam entre as pequenas seitas que foram por ele absorvidas no início do século II, devem sua origem, como já mostramos, a Nicolau de Antioquia, "um homem de bom renome, cheio do Espírito Santo e de Sabedoria". Que absurda a idéia de que tais homens teriam instituído "ritos libidinosos"! Seria o mesmo que acusar Jesus de ter promovido os ritos similares que vemos praticados com tanta freqüência pelos cristãos medievais ortodoxos atrás da segura proteção dos muros monásticos.

O cristianismo dogmático e fabricado do período Constantino é simplesmente um rebento das numerosas seitas conflitantes, elas mesmas meias-castas, nascidas de pais pagãos. Cada uma delas poderia reivindicar seus representantes convertidos ao chamado corpo ortodoxo de cristãos. E como todo dogma recém-nascido tinha de ser aceito por maioria de votos, toda seita coloria a substância principal com a sua própria nuança, até o momento em que o imperador impunha ao mundo, como a religião de Cristo, essa miscelânea, de que ele evidentemente não entendia uma palavra. Fatigado por seus vãos esforços para aprofundar esse pântano insondável de especulações internacionais, incapaz de apreciar uma religião baseada na pura espiritualidade de uma concepção ideal, o Cristianismo entregou-se à adoração da força bruta representada pela Igreja edificada por Constantino. Desde então, entre os milhares de ritos, dogmas e cerimônias copiados do Paganismo, a Igreja só pode reivindicar uma única invenção, absolutamente original, a saber, a doutrina da condenação eterna, e um costume, o do anátema. Os pagãos rejeitavam a ambos com horror. "Uma execração é uma coisa temerária e terrível", diz Plutarco. "Por tal razão, a sabedoria de Atenas foi condenada por ter recusado a amaldiçoar Alcebíades [por profanação dos mistérios], quando o povo lhe pedia para fazê-lo; pois, ela era uma sacerdotisa de preces, não de maldições".

"Pesquisas aprofundadas mostrariam" - diz Renan - "que quase tudo no Cristianismo é mera bagagem trazida dos mistérios pagãos. O culto cristão primitivo nada é senão um mistério. Toda a política interna da Igreja, os graus de iniciação, o imperativo do silêncio, e a mesma de frases da linguagem eclesiástica, não têm outra origem. A revolução que sufocou o Pagamismo parece à primeira vista (...) uma ruptura absoluta com o passado (...) mas a fé popular salvou seus símbolos mais populares do naufrágio. O Cristianismo introduziu, de início, tão poucas modificações nos hábitos da vida privada e social que para muitos, nos séculos IV e V, é incerto se deve contá-los entre os pagãos ou entre os cristãos; muitos parecem ter trilhado um caminho indeciso entre os dois cultos." Falando mais adiante da Arte, que formou uma parte essencial da religião antiga, diz ele que "foi difícil quebrar uma de suas tradições. A arte cristã primitiva não passa, na verdade, de arte pagã em sua decadência, ou de natureza inferior. O Bom Pastor das catacumbas em Roma é uma cópia do Aristeu, ou do Apolo Nomios, que figura na mesma postura dos sarcófagos pagãos, e ainda traz a flauta de Pan no meio das quatro estações. Na tumba cristã do Cemitério de São Calixto, Orfeu encanta os animais. Noutro lugar, o Cristo como Júpter-Plutão, e Maria como Proserpina, recebem as almas que Mercúrio, portanto um elmo de largas bordas e trazendo na mão o caduceu do condutor de almas (psychopompos), lhes leva, na presença das três parcas. Pégaso, o símbolo da apoteose; Psychê, o símbolo da alma imortal; o Céu, personificado por um homem velho; o rio Jordão, e Vitória, representada em inúmeros monumentos cristãos."

Como já mostramos alhures, a comunidade cristã primitiva era composta de pequemos grupos espalhados por toda parte, e organizados em sociedades secretas, com senhas e sinais. Para evitar as incessantes perseguições de seus inimigos, eles eram obrigados a buscar segurança e a se reunirem em catacumbas abandonadas, em locais inacessíveis das montanhas, e em outros esconderijos seguros. Toda reforma religiosa depara, em seu início, com tais dissabores. Desde a sua primeira aparição, vemos Jesus e seus doze discípulos reunindo-se à parte, em refúgios seguros no deserto, e entre os amigos de Betânia. Se a cristandade não se tivesse composto de "comunidades secretas" desde o início, a história teria mais fatos para relatar sobre seu fundador e seus discípulos do que aqueles que agora dispõe.

É verdadeiramente surpreendente constatar a pouca importância que a personalidade de Jesus exerceu sobre seu próprio século. Renan mostra que Fílon, que morreu por volta do ano 50, e nasceu muitos anos antes de Jesus, vivendo na Palestina, onde a "boa nova" era pregada por todo o país, segundo os Evangelhos, jamais ouviu falar dele (Essa afirmação, infelizmente, é errada. Fílon, o judeu, residiu principalmente em Alexandria, "a morada favorita dos judeus cultos" (Yonge, The Works of Philo Judaeus, Prefácio), mas visitou Jerusalém pelo menos uma vez. N. do Org.) Josefo, o historiador, que nasceu três ou quatro anos após a morte de Jesus, menciona a sua execução numa breve sentença, e mesmo essas poucas palavras foram alteradas "por mão cristã", diz o autor da Vida de Jesus. Escrevendo no final do século I, quando Paulo, o erudito propagandista, conforme se alega, havia fundado tantas igrejas, e Pedro, estabelecido a sucessão apostólica, que a cronologia irinaico-euseviana pretende já contar com três bispos de Roma, Josefo, o cuidadoso enumerador e minucioso historiador mesmo das seitas mais insignificantes, ignora inteiramente a existência de uma seita cristã. Suetônio, secretário de Adriano, escrevendo na primeira quadra do século II, sabe tão pouco de Jesus ou de sua história a ponto de dizer que o Imperador Cláudio "baniu todos os judeus, que causavam contínuas perturbações, por instigação de um tal Chêstos", ou seja, Cristo, segundo podemos supor. O próprio Imperador Adriano, escrevendo ainda mais tarde, estava tão pouco impressionado com os dogmas ou com a importância da nova seita que, numa carta a Serviano, mostra acreditar que os cristãos eram adoradores de Serapis. "No século II", diz C. W. King, "as seitas sincréticas que haviam surgido em Alexandria, o berço do gnosticismo, encontraram em Serapis um tipo profético de Cristo como Senhor e Criador de tudo, e Juiz da vida e da morte". Portanto, ao passo que os filósofos "pagãos" jamais haviam considerado Serapis, ou antes a idéia abstrata que nele se encarnava, senão como uma representação da anima mundi, os cristãos antropomorfizaram o "Filho de Deus" o seu "Pai", não encontrando modelo melhor para ele do que o ídolo de um mito pagão! "Não há dúvida" - assinala o mesmo autor - "que a cabeça de Serapis, marcada como é sua face por uma grave e pensativa majestade, forneceu a primeira idéia para as imagens convencionais do Salvador". (King, The Gnostic, etc. p.68 [p. 161-62 na 2ª ed.]. Em Symbolical Language of Ancient Art and Mythology, de R. Payne Knight, Serapis é representada com longos cabelos, "penteados para trás e dispostos em madeiras que caem sobre seus ombros como os da mulher. Todo seu corpo está sempre envolto num traje que lhe desce até os pés" (§ CXLV). Essa é a imagem convencional de (Jesus) Cristo.)

Nas notas tomadas por um viajante - cujo episódio com os monges do Monte Athos foi mencionado acima - encontramos que, durante sua juventude, Jesus havia tido freqüentes contatos com os essênios pertencentes à escola pitagórica, e conhecidos como koinobioi. Acreditamos que Renan se equivoca quando afirma dogmaticamente que Jesus "ignorava por completo os nomes de Buddha, Zoroastro e Platão"; que ele jamais havia lido um livro grego ou budista, "embora mais de um elemento de sua doutrina procedesse do Budismo, do Parsismo e da sabedoria grega". Isso é conceder um meio-milagre, e dar muita oportunidade ao acaso e à coincidência. É um abuso de privilégio quando um autor, que afirma escrever fatos históricos, tira deduções convencionais de premissas históricas, e então chama sua biografia de - uma Vida de Jesus. Assim como qualquer compilador das lendas relativas à história problemática do profeta nazareno, não tem ele uma polegada de terreno seguro em que se apoiar; não se pode afirmar o contrário, exceto por vias dedutivas. No entanto, ao passo que Renan não tem um único fato solitário para mostrar que Jesus jamais havia estudado os dogmas metafísicos do Budismo e do Parsismo, ou tido conhecimento da filosofia de Platão, seus oponentes têm as melhores razões do mundo para suspeitar o contrário. Quando eles acreditam que - 1ª, todas as suas máximas têm um espírito pitagórico, quando não repetições verbatim; 2ª, seu código de ética é puramente budista; 3ª, seu modo de vida e seus atos são essênios; e 4ª, sua maneira mística de expressão, suas parábolas, e seus hábitos são os de um iniciado, seja grego, caldeu ou mágico (pois os "Perfeitos", que falaram da sabedoria oculta, pertenciam à mesma escola de saber arcaico em todo o mundo), é difícil escapar à conclusão lógica de que ele pertencia ao mesmo corpo de iniciados. É um pobre tributo pago ao Supremo, essa tentativa de impingir-Lher quatro evangelhos, nos quais, contraditórios como são, não há uma única narrativa, sentença ou expressão peculiar, cujo paralelo não possa ser encontrado em alguma doutrina ou filosofia mais antiga. Na verdade, o Todo-Poderoso - não fosse apenas para poupar às gerações futuras a sua atual perplexidade - poderia ter trazido Consigo, em Sua primeira e única encarnação na Terra, algo original - algo que traçasse uma linha distinta de demarcação entre Ele e os numerosos outros deuses encarnados pagãos, que haviam nascidos de virgens, e todos salvadores, mortos ou sacrificados para o bem da Humanidade.

Concessões demais foram feitas ao lado emocional da história. O que o mundo precisa é uma concepção menos exaltada, porém mais fiel, de uma personagem por cuja adoração aproximadamente metade da cristandade destronou o Todo-Poderoso. Não contradizemos o erudito mundialmente famoso, quando em sua Vida de Jesus, aduz com afirmações históricas. Contestamos apenas umas poucas asserções injustificáveis e insustentáveis que o narrador emotivo deixou escapar nas páginas, por outro lado tão belas, de sua obra - uma vida construída sobre meras probabilidades, mas de alguém que, se aceito como personagem histórica, tem maiores direitos ao nosso amor e à nossa veneração, falível como é em toda a sua grandeza, do que se o representamos como um Deus onipotente. É apenas neste último caráter que Jesus pode ser visto por todo espírito reverente como um fracasso.

Não obstante a escassez das obras filosóficas de que agora dispomos, poderíamos apresentar inúmeros exemplos da perfeita identidade entre as máximas pitagóricas, as hindus e as do Novo Testamento. Não há dúvida a esse respeito. O que é necessário é um público cristão que examine o que lhe for mostrado, e

que dê seu veredicto de maneira honesta. A fraude já teve sua hora, e cometeu o que havia de pior. "Não devemos nos assustar", diz o Prof. Müller, "se descobrimos traços de verdade cristã, entre os sábios e os legisladores de outras nações."

Após a leitura dos seguintes aforismos filosóficos, quem poderá acreditar que Jesus e Paulo jamais leram os filósofos gregos e indianos?

VERSÍCULOS DO NOVO TESTAMENTOMÁXIMAS DE SEXTO, O PITAGÓRICO, E DE OUTROS PAGÃOS
1. "Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os destroem, e onde os ladrões arrombam e roubam"(Mateus, VI, 19).1. "Possui apenas as coisas que ninguém te possa roubar."
2. "E se tua mão te escandalizar, corta-a; é melhor para ti entrares mutilado para a vida, do que, tendo duas mãos, ir para o inferno", etc. (Marcos, IX,43).2. É melhor queimar uma parte do corpo do que deixá-la no estado em que está, assim como é melhor para um homem depravado morrer que viver."
3. Não sabeis que sois um templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?" (1 Coríntios, III,16).3. "Tendes em vós algo semelhante a Deus: portanto, considerai-vos como o templo de Deus."
4. "Deste modo vos tornareis filhos de vosso Pai que está no Céu (...) sede perfeitos como o vosso Pai que está no céu é perfeito (Mateus, V, 45-8).4. "A melhor honra que se pode prestar a Deus é conhecê-lo e imitá-lo."
5. "Fazei ao próximo o que desejais que o próximo vos faça."5. "O que não desejo que os homens me façam, eu também não faço para os homens" (Analetos de Confúcio, cap. V, XV; ver Masx Müller, Chips, I, pp. 304 e s.).
6. "Ele faz nascer o seu Sol igualmente sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos" (Mateus, V, 45).6. "A Lua brilha mesmo na casa do Pecador"( Manu).
7. "Pois àquele que tem, lhe será dado (...) ao que não tem, mesmo o que tem lhe será tirado" (Mateus, XIII, 12).7. "Dá-se àquele que dão; rouba-se aqueles que roubam" (Ibid.).
8. "Bem-aventurado os puros de coração, porque verão a Deus" (Mateus, V, 8).8. "Só a pureza da mente permite ver a Deus" (ibid.) - ainda hoje uma máxima popular na Índia.

 

Platão não escondeu o fato de que extraiu suas melhores doutrinas filosóficas de Pitágoras, e que foi simplesmente o primeiro a reduzi-las a uma ordem sistemática, mesclando-se ocasionalmente com suas próprias especulações metafísicas. Mas o próprio Pitágoras obteve suas recônditas doutrinas, primeiro dos descendentes de Mochus, e depois dos brâmanes da Índia. Ele foi também iniciado nos mistérios dos hierofantes de Tebas, os magi persas e caldeus. Assim, podemos traçar, passo por passo, a origem de muitas de nossas doutrinas na Ásia Menor. Retirai do Cristianismo a personalidade de Jesus, tão sublime graças à sua incomparável simplicidade, e o que resta? A História e a Teologia comparada nos dão a melancólica resposta: "Um esqueleto esfarelado constituído dos mitos pagãos mais antigos"!

Enquanto o nascimento mítico e a vida de Jesus são uma cópia fiel do Krishna bramânico, seu caráter histórico de reformador religioso na Palestina, é o que mais se assemelha a Buddha, na Índia. Em mais de um sentido, sua grande semelhança nas aspirações filantrópicas e espirituais, assim como nas circunstâncias externas, sendo tudo verdadeiramente impressionante. Embora filho de um rei, ao passo que Jesus era apenas um carpinteiro, Buddha não pertencia por nascimento à alta casta dos brâmanes. Como Jesus, ele se sentiu insatisfeito com o espírito dogmático da religião de seu país, a intolerância do clero, sua exibição externa de devoção, e suas cerimônias e orações inúteis. Assim como Buddha rejeitou violentamente as leis e as regras tradicionais dos brâmanes, Jesus declarou guerra contra os fariseus e os orgulhosos saduceus. O que o nazareno fez como conseqüência de seu nascimento e de sua posição humilde, Buddha o fez como uma penitência voluntária. Ele viajava como um mendigo; e - ainda como Jesus -, no curso da vida, procurava de preferência a companhia dos publicanos e dos pecadores. Ambos tinham em mente tanto uma reforma social, como uma reforma religiosa; e, dando o golpe de misericórdia à antiga religião de seus países, ambos se tornaram o fundador de uma nova religião.

"A reforma de Buddha", diz Max Müller, "teve na origem muito mais um caráter social do que uma caráter religioso (...) O elemento mais importante da reforma budista sempre foi o seu código social e moral, não suas teorias metafísicas. Esse código moral (...) é um dos mais perfeitos de que o mundo tem notícia (...) e aquele cujas meditações procuravam libertar a alma do homem da miséria e do medo da morte, libertaram o povo da Índia da servidão degradante de uma tirania sacerdotal." Ademais, o conferencista acrescenta, por outro lado, que, se fosse diferente, "Buddha poderia ter ensinado a filosofia que lhe aprouvesse, e dificilmente lhe teríamos ouvido o nome. O povo não lhe teria notado a existência, e seu sistema cairia como uma gota no oceano da especulação filosófica, pelo qual a Índia tem sido inundada por todos os tempos."

 

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