As alegorias da "queda do homem"

Enviado por Estante Virtual em sex, 23/11/2012 - 19:06

As doutrinas hindus falam de dois Pralayas, ou dissoluções; uma universal, o Mahâ-Pralaya, a outra parcial, ou Pralaya menor. Isto não diz respeito à dissolução universal que ocorre ao fim de todo "Dia de Brahmâ", mas aos cataclismos geológicos ao fim de todo ciclo menor de nosso globo. Esse dilúvio histórico e local da Ásia Central, cujas tradições podem ser traçadas em todos os países, e que, de acordo com Bunsen, ocorreu por volta do ano 10.000, nada tem a ver com o Noé, ou Nuah, mítico. Um cataclismo parcial ocorre ao término de toda "idade" do mundo, dizem elas, e não destrói a este, mas apenas lhe modifica a aparência geral. Novas raças de homens e animais e uma nova flora têm origem na dissolução das precedentes.

As alegorias da "queda do homem" e do "dilúvio" são as caraterísticas mais importantes do Pentateuco. Elas são, por assim dizer, o Alfa e o Ômega, as chaves superiores e inferiores da escala de harmonia na qual ressoa o majestoso hino da criação da Humanidade, pois revelam àquele que interroga a Zura (figurado, Gematria), o processo da evolução humana desde a entidade espiritual mais elevada até o homem pós-diluviano mais inferior; como nos hieróglifos egípcios, em que cada signo da escrita pictográfica que não pode ser relacionado a uma determinada figura geométrica circunscrita deve ser rejeitado, por se tratar de um véu erguido deliberadamente sagrado, muitos dos detalhes da Bíblia podem ser tratados com base no mesmo princípio, aceitando-se uma parte apenas quando responde aos métodos numéricos ensinados na Cabala.

O dilúvio figura nos livros hindus apenas como uma tradição. Não tem nenhum caráter sagrado, e o encontramos no Mahâbrârata, nos Purânas, e ainda antes no Satapatha, um dos últimos Brâhmanas. É mais do que provável que Moisés, ou quem quer que tenha escrito por ele, utilizou esses relatos como base de sua própria alegoria propositadamente desfigurada, acrescentando-lhe ademais a narrativa caldaico-berosiana. No Mahâbrârata, reconhecemos Nimrod sob o nome do King Daitya. A origem da fábula grega dos Titãs escalando o Olimpo, e a da outra sobre os construtores da Torre de Babel que procuram alcançar o céu, acha-se no ímpio Daitya, que lança imprecações contra o relâmpago do céu, e tenta conquistar o próprio céu com seus poderoso guerreiros, trazendo dessa forma para a Humanidade a ira de Brahmâ. "O Senhor então resolveu", diz o texto, "castigar as suas criaturas com uma terrível punição que serviria como uma advertência para os sobreviventes, e os seus descendentes."

Vaivasvata (que na Bíblia torna-se Noé) salva um pequeno peixe, que vem a ser um avatâra de Vishnu. O peixe avisa ao justo homem que o bloco está prestes a ser submerso, que tudo que o habita deve perecer, e ordena-lhe que construa um barco no qual embarcará, com toda a sua família. Quando o barco está pronto, e Vaivasvata encerrado nele com sua família, com as sementes das plantas e com os pares de todos os animais, e a chuva começa a cair, um gigantesco peixe, armado com um corno, se coloca à testa da arca. O santo homem, seguindo suas ordens, amarra uma corda ao seu corno, e o peixe guia o navio com segurança através dos elementos em revolta. Na tradição hindu, o número de dias durante os quais durou o dilúvio concorda exatamente com o relato mosaico. Quando os elementos se acalmaram, o peixe depôs a arca no topo do Himâlaya.

Muitos comentadores ortodoxos afirmam que essa fábula foi emprestada das Escrituras mosaicas. Mas, se um cataclismo universal como esse tivesse ocorrido à memória humana, alguns dos monumentos egípcios, dos quais muitos são de uma tremula antigüidade, teriam com certeza registrado essa ocorrência, justamente com a da desgraça de Cão, Canaã e Mizraim, seus pretensos ancestrais. Mas até o presente não se encontrou a menor alusão a tal calamidade, embora Mizraim certamente pertença à primeira geração pós-diluviana, se é que ele próprio não seja pré-diluviano. Por outro lado, os caldeus preservaram a tradição, como o testemunha Berosus, e hindus antigos possuem a lenda tal como dada acima. Ora, há apenas uma explicação para o extraordinário fato de que de duas nações civilizadas e contemporâneas como Egito e Caldéia, uma não tenha preservado nenhuma tradição a respeito, embora tivesse um interesse direto a ocorrência - se acreditamos na Bíblia -, e a outra sim. O dilúvio relatado na Bíblia, em um dos Brâhmanas, e nos Fragmentos de Berosus, dá notícia do dilúvio parcial que, por volta do ano 10.000, segundo Busen, e de acordo também com as computações Bramânicas do Zodíaco, mudou toda a face da Ásia Central. Portanto, os babilônios e os caldeus poderiam ter tido dele conhecimento através de seus misteriosos convidados, batizados por alguns assiriólogos de acádios, ou, o que é ainda mais provável, eles próprios talvez tenham sido os descendentes daqueles que haviam habitado as localidades submersas. Os Judeus tornaram a narrativa dos caldeus, assim como tudo o mais; os brâmanes podem ter registrado as tradições das terras que invadiram, e que eram talvez habitadas antes de eles terem dominado o Puñjâb. Mas os egípcios, cujos primeiros colonos vieram evidentemente da Índia setentrional, tinham menos razões para registrar o cataclismo, visto que ele talvez jamais os tenha afetado, exceto indiretamente, pois o dilúvio se limitou à Ásia Central.

Burnouf, comentando o fato de que a história do dilúvio se acha apenas em um dos Brâhmanas mais modernos, pensa também que ela deve ter sido tomado pelos hindus das nações semitas. Contra tal suposição, enfileiram-se todas as tradições e costumes dos hindus. Os Âryas, e especialmente os brâmanes, jamais tomaram o que quer que seja dos semitas, e aqui somos apoiados por uma dessas "testemunhas involuntárias", como chama Higgins aos partidários de Jeová e da Bíblia. "Jamais vi coisa alguma na história dos egípcios e dos judeus", escreve o Abade Dubois, após quarenta anos residindo na Índia, "que me induzisse a acreditar que uma das nações ou qualquer outra na face da Terra se tenha estabelecido mais cedo do que os hindus e particularmente os brâmanes; portanto, não posso acreditar que estes últimos tomado seus ritos de nações estrangeiras. Pelo contrário, deduzo que eles os extraíram de uma fonte original e própria. Quem quer que conheça algo do espírito e do caráter dos brâmanes, e sua majestade, o seu orgulho e extrema vaidade, a sua distância e seu soberano desrespeito por tudo o que é estrangeiro e pelo que eles não podem orgulhar-se de ser os inventores, concordará comigo em que tal povo não pode ter consentido em tomar seus costumes e regras de conduta de um país alienígena."

A fábula que menciona o primeiro avatâra - Matsya - diz respeito a outro yuga, diferente do nosso, o primeiro aparecimento da vida animal; talvez, quem sabe, ao período devoniano de nossos geólogos. Ela com certeza corresponde melhor a esse período do que o ano 2348 a.C.! Além disso, a própria ausência de qualquer menção ao dilúvio nos livros mais antigos dos hindus sugere um poderoso argumento quando só podemos nos haver com inferências, como neste caso. "Os Vedas e Manu", diz Jacolliot, "esses monumentos do antigo pensamento asiático, existiam muito tempo antes do período diluviano; esse é um fato indiscutível, e tem todo o valor de uma verdade histórica, pois, além da tradição que mostra o próprio Vishnu salvando os Vedas do dilúvio - tradição que, não obstante a sua forma lendária, deve certamente repousar num fato real -, é bem evidente que nenhum desses livros sagrados faz menção ao cataclisma, ao passo que os Purânas e o Mahâbhârata, e um grande número de outras obras mais recentes, o descrevem com profusão de detalhes, o que é uma prova da anterioridade dos primeiros textos. Os Vedas não deixaram certamente de conter uns poucos hinos sobre o terrível desastre que, mais do que todas as outras manifestações naturais, deve ter impressionado a imaginação das pessoas que o testemunharam.

"Nem teria Manu, que nos dá uma completa narrativa da criação, com uma cronologia das eras divinas e heróicas, até o aparecimento do homem sobre a Terra - deixando passar em silêncio um evento de tal importância. (...) Manu (livro I, sloka 35) dá os nomes de dez eminentes santos a quem chama de prajâpatis, em quem os teólogos bramânicos vêem profetas, ancestrais da raça humana, e os pânditas simplesmente consideram como os dez reis poderosos que viveram no Krita-yuga, ou a idade do bem (a "era de ouro" dos gregos)."

O último desses prajâpatis é Nârada.

"Enumerando a sucessão desses seres eminentes que, de acordo com Manu, governaram o mundo, o velho legislador bramânico os designa como descendentes de Bhrigu: Svârochisha, Auttami, Tâmasa, Raivata, o glorioso Châkshusha, e o filho de Vivasvat, cada um dos quais se tornou digno do título de Manu (legislador divino), título que pertencia igualmente aos Prajâpatis e a todo grande personagem da Índia primitiva. A genealogia detém-se nesse nome.

"Ora, segundo os Purânas e o Mahâbhârata, foi sob um descendente desse filho de Vivasvat, de nome Vaivasvata, que ocorreu o grande cataclismo; cuja lembrança, como se verá, passou à tradição, e foi trazida pela emigração a todos os países do Oriente que a Índia colonizou desde então.(...)

"Visto que a genealogia dada por Manu pára, como vimos, em Vivasvat, segue-se que essa obra [a de Manu] nada sabia, seja de Vaivasvata, seja do dilúvio."

A História fala-nos da corrente de imigração ao longo do Indo, e da sua posterior invasão do Ocidente, como populações de origem hindu abandonando a Ásia Menor para colonizar a Grécia. Mas a História não diz uma única palavra sobre o "povo eleito" ou sobre as colônias gregas que teriam penetrado a Índia antes dos séculos V e IV a.C., época em que encontramos as primeiras e vagas tradições que fazem algumas das problemáticas tribos perdidas de Israel tomar, na Babilônia, a rota para a Índia. Mas mesmo se a história das dez tribos fosse digna de crédito, e, se provasse que as tribos existiram tanto na história sagrada como na profana, isso não ajudaria na solução do problema. Colebrooke, Wilson e outros eminentes indianistas mostram que o Mahâbhârata, se não o Satapatha-Brâhmana, em que a história também figura, é anterior à época de Ciro - e, por conseguinte, anterior à época possível do surgimento de qualquer das tribos de Israel na Índia.

 

Outras páginas interessantes: