Nessa linguagem, como nos textos budistas, o negativo é tratado como existência essencial, A aniquilação inclui-se numa exegese similar. O estado positivo é um ser essencial, mas não se manifesta como tal. Quando o espírito, segundo a tese budista, entra no Nirvana, perde a sua existência objetiva, mas conserva a subjetiva. Para as mentes objetivas, isto é tornar-se absolutamente nada; para as subjetivas, coisa-alguma, nada que possa ser manifestado pelos sentidos.
Essas citações, embora longas, são necessárias ao nosso propósito. Melhor do que tudo, elas mostram a concordância existente entre as mais antigas filosofias "pagãs" - não "iluminadas pela luz da revelação divina", para usar essa curiosa expressão de Laboulaye em relação a Buddha - e o Cristianismo primitivo de alguns padres. A filosofia pagã, bem como o Cristianismo, todavia, devem suas idéias elevadas sobre a alma e o espírito do homem e sobre a Divindade desconhecida ao Budismo e ao Manu hindu. Não espanta que os maniqueus afirmassem que Jesus era uma permutação de Gautama; que Buddha, Cristo e Mani eram uma e a mesma pessoa, pois os ensinamentos dos dois primitivos eram idênticos. Foi a doutrina da Índia antiga que Jesus professou quando pregava a renúncia completa ao mundo e às suas vaidades, a fim de chegar ao reino dos Céus, Nirvana, onde "nem se casa, nem se dá em casamento, mas onde se vive como os anjos".
Foi ainda a filosofia de Siddhârthra-Buddha que Pitágoras expôs, quando dizia que o ego era eterno com Deus e que a alma atravessa vários estágios (os Rûpa-lokas hindus) para chegar à excelência divina; entretanto, o thumos voltava à Terra e o phrên era ilimitado. Assim, a metempsicose era apenas uma sucessão de disciplinas através dos refúgios celestes, para que se desembaraçasse da mente exterior, para separar o Nous do phrên, ou alma, o "Viññâna-skandha" budista, o princípio que vive do Karma e dos skandhas (grupos). É este último - a personificação metafísica das "ações" do homem, boas ou más - que, após a morte do seu corpo, se encarnam, por assim dizer, e reúnem os seus compostos invisíveis e imortais num corpo novo, ou antes num ser etéreo, o duplo do que o homem era moralmente. É o corpo astral do cabalista e as "ações encarnadas" que formam o novo eu consciente, pois seu Ahamkara (o ego, autoconsciência), dado a ele pelo Mestre soberano (o sopro de Deus), [que] nunca pode perecer, pois é imortal per se na qualidade de um espírito; donde o sofrimento do eu recém-nascido, até que se liberte de todo pensamento, desejo ou paixão terrenos.
Vemos agora que os "quatro mistérios" da doutrina budista foram pouco compreendidos e apreciados como a "sabedoria" de que fala Paulo e pregada "entre aqueles que são perfeitos" (iniciados), a "sabedoria-mistério" que "nenhum dos Arcontes desse mundo conheceu". O quarto grau do Dhyana budista, o fruto do Samâdhi, que leva à perfeição última, ao Visodhana (termo traduzido corretamente por Burnouf como "aperfeiçoado"), foi totalmente mal-interpretado por outros, e mesmo por ele próprio. Definindo a condição de Dhyana, Saint-Hilaire afirma que:
"Finalmente, tendo chegado ao quarto grau, o asceta não possui mais sentimento de beatitude, por obscuro que ele possa ser (...) ele também perdeu toda a memória (...) atingiu a impassibilidade, tão próxima do Nirvana quanto possível (...) Todavia, essa impassibilidade absoluta não impede que o asceta adquira, nesse momento preciso, a Oniciência e o poder mágico; uma flagrante contradição, com que os budistas se preocupam tanto quanto muitos outros".
E por que eles haveriam de se preocupar com ela, quando essas contradições não são, de fato, contradições? Não nos convém falar agora das contradições nas religiões de outros povos, quando as da nossa suscitaram, além dos três grandes corpos conflitantes - Romanismo, Protestantismo e Igreja Oriental -, mil e uma seitas minúsculas muito curiosas. Seja como for, eis aqui um termo aplicado à mesma coisa pelos
"mendicantes" sagrados budistas e por Paulo, o Apóstolo. Quando este último diz": "Se eu puder conseguir a ressurreição dos mortos [o Nirvana], será porque já paguei o seu preço ou atingi a perfeição" (fui iniciado), utilizando assim uma expressão comum entre os iniciados budistas. Quando um asceta budista chega ao "quarto grau", ele é considerado um rahat. Produz toda a sorte de fenômenos apenas com o poder de seu espírito liberado. Um rahat, dizem os budistas, é aquele que adquiriu o poder de voar pelo ar, de se tornar invisível, de comandar os elementos e de executar todo tipo de maravilhas comum e erradamente chamadas de meipo (milagres). Ele é um homem perfeito, um semideus. Ele se tornará um deus quando alcançar o Nirvana; pois, como os iniciados de ambos os Testamentos, os adoradores de Buddha sabem que eles "são deuses".
"O Budismo genuíno, franqueando as barreiras entre a mente finita e infinita, estimula os seus seguidores a aspirar, por seus próprios esforços, àquela perfectibilidade divina - de que o homem é capaz, segundo o seu ensinamento e que, conquistada, torna o homem um deus", diz Brian Houghton Hodgson.
Tristes e desolados foram os caminhos e cobertas de sangue as trilhas tortuosas por que o mundo dos cristãos foi levado a abraçar o Cristianismo de Irineu e de Eusébio. E, no entanto, a menos que aceitemos os pontos de vista pagãos, como a nossa geração poderia ter resolvido o problema dos mistérios do "reino dos céus"? O que mais o mais piedoso e culto dos cristãos sabe do destino futuro e do progresso dos nossos espíritos imortais do que o filósofo gentio de outrora ou o "pagão" moderno que vive além do Himalaia? Pode ele se gabar de saber tanto, embora trabalhe na chama brilhante da revelação "divina"? Vimos um budista fiel à religião dos seus pais, tanto em teoria quanto na prática; e, cega, quanto pudesse ser a sua fé, absurdas que fossem as suas noções sobre alguns pontos doutrinais particulares, enxertos posteriores de um clero ambicioso - apesar de tudo isso o seu Budismo, nos trabalhos práticos, é muito mais semelhante à imagem de Cristo em ação e em espírito, do que vemos na vida média dos nossos padres e ministros cristãos. Só o fato de que sua religião lhe ordena "honrar sua própria fé e jamais denegrir a de outros" é suficiente. Ele coloca o lama budista infinitamente mais alto do que qualquer padre ou clérigo que creia ser seu dever sagrado amaldiçoar o "gentio" publicamente e sentenciá-lo e à sua religião à "condenação eterna". O Cristianismo torna-se, a cada dia, uma religião de puro emocionalismo. A doutrina de Buddha baseia-se inteiramente em obras práticas. Um amor geral para com todos os seres, humanos e animais, é o seu núcleo. Um homem que sabe que, se não trabalhar, morrerá de fome, e compreende que não há um bode expiatório para carregar por ele as suas iniqüidades - este homem está dez vezes mais certo de se tornar um homem virtuoso, do que aquele a quem se ensina que o assassínio, o roubo e a libertinagem se lavam (brancos como a neve) num instante, se ele acreditar num Deus que, para usar uma expressão de Volney, "já tomou alimentos na Terra e agora se converteu no alimento de seu povo".