Diferença entre a fé e o conhecimento, ou a fé cega e a arrazoada

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:48

P: Disse que aceitam as doutrinas teosóficas e crêem nelas. Mas, como não fazem parte desses adeptos de que acabou de falar, têm que aceitar suas doutrinas com fé cega. E em que isto difere das religiões convencionais?

T: Assim como difere em quase todos os demais pontos, difere neste também. O que você chama de "", e que em realidade é fé cega com relação aos dogmas das religiões cristãs, para nós converte-se em conhecimento, resultado lógico de coisas que sabemos acerca de fatos da natureza. Suas doutrinas estão baseadas na interpretação, e, portanto, no testemunho de segunda mão de videntes; as nossas o estão no testemunho direto invariável de videntes. Por exemplo, a Teologia cristã comum sustenta que o homem é uma criação de Deus, composta de três partes: corpo, alma e espírito, todas essenciais à sua integridade; seja sob a forma densa da existência física terrestre, ou sob a forma etérea da experiência da pós-ressurreição, necessária para sua constituição eterna, deste modo tendo cada homem uma existência permanente, separada dos demais homens e da Divindade. Por 'seu lado, a Teosofia afirma que sendo o homem uma emanação da essência divina desconhecida e sempre infinita e presente, o corpo, como tudo o mais, é passageiro, e, portanto, ilusório; a única substância permanente nele é o espírito, este mesmo perdendo sua individualidade separada no momento de sua completa reunião com o Espírito Universal.

 

P: Se perdemos até nossa individualidade, então isto é simplesmente o aniquilamento?

T: Eu digo que não, uma vez que falo da individualidade separada e não da universal. Esta individualidade converte-se em uma parte transformada no todo; como não se evapora a gota de orvalho, mas sim, converte-se em oceano. Quando o homem físico converte-se de um feto em um ancião, está por isso aniquilado? Quão satânico não será nosso orgulho, quando colocamos nossa consciência e individualidade — infinitamente pequenas — por cima da consciência universal e infinita!

 

P: Resulta daí, então, que de fato não existe o homem, mas sim que tudo é espírito?

T: Equívoco seu. O que resulta é que a união do espírito com a matéria é temporal; mas claro: que formando o espírito e a matéria um só todo, uma vez que são os dois pólos opostos da substância universal manifestada, o espírito perde seu direito a esse nome, enquanto a menor partícula e átomo de sua substância manifestada, aderem-se a uma forma qualquer, resultado da diferenciação.   Acreditar o contrário é fé cega.

 

P: De maneira que, baseando-o no conhecimento e não na fé, é como asseguram que o princípio permanente, ou seja, o espírito, realiza apenas um trânsito pela matéria?

T: Dizendo melhor, sustentamos que a aparência do princípio permanente e único, o espírito, é. transitória como matéria, e, por conseguinte, nada mais é do que uma ilusão.

 

P:  E isto apoiando-o no conhecimento e não na fé?

T: Precisamente. Mas como vejo nitidamente onde você pretende chegar, melhor será que diga desde logo que consideramos a fé — tal como vocês a compreendem -- como uma enfermidade mental; e a f é verdadeira, isto é, a pistis dos gregos, como a crença baseada no conhecimento derivado da evidência, assim como dos sentidos físicos e dos espirituais.

 

P:  Que entendem por isto?

T: Quero dizer, se é que deseja saber qual a diferença que há entre ambas, que entre a fé baseada na autoridade e a baseada na própria intuição espiritual, existe uma diferença muito grande.

 

P:  Qual é?

T: A primeira é credulidade e superstição humanas, e a segunda é crença e intuição humanas. Como disse muito bem o professor Alexandre Wilder em seu Introdução aos Mistérios Eleusianos: "A ignorância é o que conduz à profanação. Os homens ridicularizam aquilo que não compreendem devidamente... A corrente interna deste mundo dirige-se para uma meta; e no fundo da credulidade humana... existe um poder quase infinito, uma fé santa, capaz de compreender as verdades supremas de toda existência". Os que limitam essa "credulidade" somente aos dogmas humanos autoritários, jamais conceberão aquele poder, nem mesmo o reconhecerão em suas naturezas. Tal credulidade está fortemente aderida ao plano externo, e é incapaz de pôr em jogo a essência que o governa; porque para fazê-lo têm que reclamar seu direito de julgar privadamente, e isto nunca se atreverão a fazer.

 

P: E por acaso é essa "intuição" que os obriga a repelir a Deus como Pai pessoal, Dono e Senhor do Universo?

T: Justamente. Cremos em um Princípio eterno, incognoscível, porque somente a aberração cega é capaz de negar que o universo, o homem racional e todas as maravilhas que até mesmo o mundo da matéria encerra, poderiam ter se desenvolvido sem o auxílio de poderes inteligentes, que dirigissem as funções extraordinariamente sábias de todas as suas partes. A natureza pode errar em seus detalhes e nas manifestações externas de seus materiais, e o faz freqüentemente, mas jamais em suas causas e resultados internos. Os antigos pagãos tinham opiniões muito mais filosóficas com relação a essa questão, que os filósofos modernos, sejam agnósticos, materialistas ou cristãos; e até agora, jamais ocorreu a nenhum escritor pagão assentar a proposição de que a crueldade e a compaixão não são sentimentos finitos, e podem, portanto, ser atributos de um deus infinito. Por conseguinte, todos os seus deuses eram finitos. O autor siamês de Roda da Lei, expressa, tal como nós o fazemos, a mesma idéia sobre o Deus pessoal, quando diz: (pág. 25) "Poderia um buddhista crer na existência de um Deus sublime, superior a todas as qualidades e atributos humanos; Deus perfeito, a quem não afetassem o amor, o ódio e os zelos, permanecendo em um estado de calma que nada pudesse alterar. Respeitaria a um Deus semelhante, não pelo desejo de comprazer o temor de lhe ofender, mas por veneração natural; mas não pode compreender a um Deus dotado dos atributos e qualidades humanos; a um Deus que ama e odeia, e que se deixa, dominar pela ira; uma Deidade que — seja descrita por missionários cristãos, ou maometanos, ou judeus, ou os brâmanes[1] — não alcança sequer o nível de um bom homem comum".

 

P: Fé por fé, não é preferível a do Cristianismo que crê, confessando sua própria impotência e humildade, que existe no céu um Pai misericordioso que o há de livrar da tentação, ajudar na vida, e perdoar seus erros, à fé orgulhosa, fria e quase fatalista dos buddhista, vedantinos e teósofos?

T: Já que lhe agrada, continue a chamar nossa crença de "". Mas, já que voltamos a esta eterna questão, por minha vez pergunto: fé por fé, não é melhor a que está baseada estritamente na lógica e,na razão, do que a que está simplesmente na autoridade humana ou no culto dos heróis? Nossa "" possui toda a força lógica da verdade aritmética de que dois e dois serão quatro. A fé de vocês é parecida com a lógica de algumas mulheres sensíveis, de quem disse Tourgenyeff que para elas dois e dois dão geralmente cinco, ou um pouco mais. Além disso, essa fé é também uma fé que não só choca com todo e qualquer sentimento de justiça e lógica possíveis, como ainda, se bem analisada, arrasta o homem até sua perdição moral, opõe-se ao progresso da humanidade, e, positivamente, convertendo a força em direito, transforma um homem sim outro não, em um Caim para seu irmão Abel.



[1] Refere-se aqui aos brâmanes sectários. O Parabrahm dos vedantinos, é a Deidade que aceitamos e na qual cremos.

 

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