O dogma dos gnósticos

Enviado por Estante Virtual em sex, 23/11/2012 - 00:56
E agora, a fim de tornar tais passagens mais inteligíveis, tentaremos definir, da maneira mais breve possível, os dogmas em que, com diferenças insignificantes, quase todas as seitas gnósticas acreditavam. Foi em Éfeso que floresceu nessa época o colégio mais célebre, em que tanto as doutrinas abstratas do Oriente como a filosofia de Platão eram ensinadas. Ele era o foco das doutrinas "secretas" universais; o misterioso laboratório de onde nasceu, vazada na elegante fraseologia grega, a quintessência da filosofia budista, zoroastrista e caldaica. Ártemis, o gigantesco símbolo concreto das abstrações teosófico-panteístas, a grande mão Multimamma, andrógina e padroeira das "escrituras de Éfeso", foi conquistada por Paulo; mas, embora os zelosos convertidos dos apóstolos tenham pretendido queimar todos os livros sobre as "artes curiosas", muitos deles restaram, possibilitando-lhes o estudo assim que o seu zelo esfriou. Foi de Éfeso que se irradiou quase toda a Gnose, que antagonizava ferozmente com os dogmas de Irineu; e foi ainda Éfeso, com seu numerosos ramos colaterais do grande colégio dos essênios, que revelou ser o viveiro de todas as especulações cabalistas que os tannaim haviam trazido do cativeiro. "Em Éfeso", diz J. Matter, "as noções da escola judaica-egípcia haviam então recentemente chegado para engrossar a vasta confluência de doutrinas gregas e asiáticas, de modo que não é de surpreender que os mestres aí se tenham desenvolvido para tentar a combinação da religião recentemente pregada pelo Apóstolo com as idéias há muito estabelecidas nesse local."
 
Se os cristãos não se tivessem limitado às Revelações de uma pequena nação, aceitando o Jeová de Moisés, as idéias gnósticas jamais teriam sido acusadas de heresia; uma vez desembaraçado de seus exageros dogmáticos, o mundo teria possuído um sistema religioso baseado na pura filosofia platônica, e muito se teria ganho certamente com isso.
 
Vejamos agora quais são as maiores heresias dos gnósticos. Escolheremos Basilides como o modelo para as nossas comparações, pois todos os fundadores das outras seitas gnósticas se agruparam ao seu redor, como um sistema planetário que toma luz de seu Sol.
 
Basilides afirma que havia tomado todas as suas doutrinas do Apóstolo Mateus, e de Pedro, através de Gláucias, seu discípulo. De acordo com Eusébio, ele publicou vinte e quatro volumes de Interpretações dos Evangelhos, os quais todos foram queimados, fato que nos faz supor que continham mais verdades do que a escola de Irineu estava preparada para negar. Ele afirma que o Pai desconhecido, Eterno e Incriado, tendo dado nascimento em primeiro lugar ao Nous, à Mente, esta emanou de si mesma o Logos. O Logos (o "Verbo" de João) emanou por sua vez as Phronêsis, as Inteligências (espíritos divino-humanos). Das Phronêsis nasceu Sophia, a sabedoria feminina, e Dynamis - a força. Tais foram os atributos personificados da misteriosa divindade, o quintérnio gnóstico, que simboliza as cinco substâncias espirituais, mas inteligíveis, as virtudes pessoais ou os seres exteriores da divindade desconhecida. Essa é uma idéia eminentemente cabalística. Ela é ainda mais budista. O sistema primitivo da Filosofia Budista - que precedeu em muito Gautama Buddha - baseia-se na substância incriada do "Desconhecido", o Âdi-Buddha (*). Essa Mônada eterna e infinita possui, como próprios de sua essência, cinco atos de sabedoria. Destes, por meio de cinco atos separados de Dhyâna, ela emitiu cinco Dhyâni-Buddhas; estes, como Âdi-Buddha, são imóveis em seu sistema (passivo). Nem Âdi, nem qualquer dos cincos Dhyâni-Buddhas jamais se encarnou, mas sete de suas emanações tornaram-se avatâras, i.e., encarnaram-se nesta Terra.
( * Âdi-Buddha - Os cinco fazem misticamente dez. Eles são Andrógino. "Tendo dividido seu corpo em duas partes, A Sabedoria Suprema tornou-se macho e fêmea" (Manu, livro I, sloka 32). Muitas idéias budistas primitivas se acham no Bramanismo.
 
A idéia predominante de que o último dos Budistas, Gautama, é a nona encarnação de Vishnu, ou o novo Avatâra, é parcialmente refutada pelos Brâmanes, e totalmente rejeitada pelos eruditos teólogos budistas. Estes últimos insistem em que o culto de Buddha é muito mais antigo do que qualquer adoração bramânica dos Vedas, que eles chamam de literatura secular. Os Brâmanes mostram eles, provêm de outros países, e estabeleceram sua heresia sobre as divindades populares já aceitas. Conquistaram a terra pela espada, e conseguiram sepultar a verdade, edificando uma teologia própria sobre as ruínas da Teologia mais antiga de Buddha, que havia prevalecido durante séculos. Eles admitem a divindade e a existência espiritual de alguns dos deuses vedantistas; mas, como no caso da hierarquia angélica cristã, eles acreditam que todas essas divindades são muito inferiores, mesmo aos Buddhas encarnados. Não admitem a criação do universo Físico. Espiritual e invisivelmente, ele existe desde a Eternidade, e só se torna visível para os sentidos humanos. Por ocasião de sua primeira manifestação, Ele foi chamado do Reino do Invisível para o Visível por meio do impulso de Âdi-Buddha - a "Essência". Os Brâmanes computam vinte e duas dessas manifestações visíveis do universo governadas pelos Buddhas, e outras tantas destruições dele, pelo fogo e pela água, em sucessões regulares. Após a última destruição pelo dilúvio, ao fim do ciclo precedente (o cálculo exato, que compreende vários milhões de anos, é um ciclo secreto), o mundo, durante a presente idade de Kali-Yuga - Mahâ-Bhadra-Kalpa - foi governado, sucessivamente, por quatro Buddhas, o último dos quais foi Gautama, "Santo". O quinto, Maitreya-Buddha, está ainda por vir. Ele é o esperado Rei Messias cabalístico, o Mensageiro da Luz, o Saoshyant, o Salvador persa, que virá montado num cavalo branco. É também o Segundo Advento dos cristãos. Ver o Apocalipse de São João.)
 
Descrevendo o sistema de Basilides, Irineu, citando os gnósticos declara o seguinte:
 
"Quando o Pai incriado e sem nome viu a corrupção da Humanidade, enviou o seu Nous primogênito ao mundo, na forma de Cristo, para a redenção de todos os que acreditam nele, por meio da força daqueles que fabricaram o mundo [o Demiurgo e seus seis filhos, os genii planetários. Ele surgiu entre os homens como o homem Jesus, e realizou milagres. Esse Cristo não morreu pessoalmente, pois Simão, o Cirenaico, sofreu em seu lugar, emprestando-lhe sua forma corporal, pois a Força Divina, o Nous do Pai Eterno, não é o corpóreo e não pode morrer. Portanto, todos aquele que afirma que Cristo morreu é ainda escravo da ignorância; todo aquele que nega tal afirmação está livre, e compreendeu o desígnio do Pai". (Irineu. Adv. Haer., I, XXIV, 4.).
 
Até aqui, e tomando-o em seu sentido abstrato, nada vemos de blasfemo neste sistema. Ele pode ser uma heresia contra a teologia de Irineu e Tertuliano (Tertuliano virou ele próprio a mesa, rejeitando, mais tarde, as doutrinas pelas quais lutara com tanto rigor, e tornando-se um montanista.), mas não é certamente sacrílego contra a idéia religiosa em si, e a todo pensador imparcial ela parece muito mais compatível com a dignidade divina do que o antropomorfismo do cristianismo atual. Os cristãos ortodoxos chamavam os gnósticos de Docetae, ou Ilusionistas, por acreditarem que Cristo não sofreu nem poderia sofrer realmente a morte - no corpo físico. Os livros bramânicos mais recentes contêm, de igual modo, muita coisa que repugna ao sentimento e à idéia reverente da Divindade; e, assim como os gnósticos, os Brâmanes explicam as lendas que poderiam chocar a dignidade dos seres espirituais, que se chama de deuses, atribuindo-os a Mâyâ, ou ilusão.
 
Não se deve esperar que um povo, instruído e nutrido através de séculos sem fim entre todos os fenômenos psicológicos que as nações civilizadas (!) observam, mas rejeitam como incrível ou indignos, tenha seu sistema religioso compreendido, e menos ainda apreciado. As especulações mais profundas e mais transcendentais dos antigos metafísicos da Índia e de outras nações baseiam-se todas nesse grande princípio budista e bramânico que subjaz a todo o conjunto de suas metafísicas religiosas - a ilusão dos sentidos. Tudo o que é finito é ilusão, tudo o que é eterno e infinito é realidade. Forma, cor, o que ouvimos e sentimos ou vemos com nossos olhos mortais, tudo isso só existe na medida em que cada um de nós o concebe através dos sentidos. O universo para um cego de nascença não existe em forma ou cor, mas existe em sua privação (no sentido aristotélico), e é uma realidade para os sentidos espirituais do cego. Vivemos todos sob o poderoso domínio da fantasia. Apenas os originais superiores e invisíveis emanados do pensamento do Desconhecido são seres, formas e idéias reais e permanentes; na Terra, vemos apenas seus reflexos, mais ou menos corretos, e sempre dependentes da organização física e mental da pessoa que os contempla.
 
Séculos incontáveis antes de nossa era, o Místico hindu Kapila, que é considerado por muitos cientistas como um céptico, uma vez que o julgam com a sua habitual superficialidade, expressou magnificamente essa idéia nos seguintes termos:
 
"O homem [o homem físico] vale tão pouco que é coisa árdua fazê-lo compreender sua própria existência, e a Natureza. Talvez o que consideramos como universo, e os vários seres que parecem compô-lo, nada tenham de real, e não passem de produto da ilusão contínua - mâyâ - de nossos sentidos".
 
E diz o moderno Schopenhauer, repetindo essa idéia filosófica de 10.000 anos de idade: "A Natureza não existe per se (...) A Natureza é a ilusão infinita de nossos sentidos." Kant, Schelling e outros metafísicos disseram o mesmo, e suas escolas sustentam tal idéia. Visto que os objetos dos sentido são sempre enganosos e flutuantes, não podem ser uma realidade. Só o espírito é imutável; portanto - é o único que é ilusório. Tal é a pura doutrina budista. A religião da Gnose (conhecimento), ramo mais evidente do Budismo, baseava-se por
completo nesse dogma metafísico. Cristos sofreu espiritualmente por nós, e muito mais agudamente do que fez o ilusório Jesus enquanto o seu corpo estava sendo torturado na Cruz.
 
O Cristos grego tem vários sentidos, tais como "ungido" (óleo puro, crisma), e outros. Em todas as línguas, embora o sinônimo da palavra signifique essência pura ou sagrada, ela representa a primeira emanação da Divindade invisível, que se manifesta tangivelmente no espírito. O Logos grego, o Messias hebraico, o Verbum latino e o Virâj (o filho) hindu são identicamente os mesmos; representam uma idéia de entidades coletivas - de chamas que se destacam de um centro eterno de Luz.
 
"O homem que cumpre atos piedosos, mas interesseiros [visando exclusivamente à sua salvação], pode alcançar as fileiras dos devas [santos]; mas aquele que cumpre desinteressadamente os mesmos atos piedosos vê-se liberto para sempre dos cinco elementos" (da matéria). "Percebendo a Alma Suprema em todos os seres e todos os seres na Alma Suprema, oferecendo sua própria alma em sacrifício, ele se identifica com o Ser que brilha em seu próprio esplendor". (Manu, livro XII, sloka 90, 91.)
 
Assim, Cristos, como unidade, não passa de uma abstração: uma idéia geral que representa a agregação coletiva das inúmeras entidades espirituais que são as emanações da PRIMEIRA CAUSA infinita, invisível, incompreensível - os espíritos individuais dos homens, erroneamente chamados de almas. Eles são os filhos divinos de Deus, dos quais apenas alguns dominam os homens - mas estes a maioria; alguns permanecem para sempre espíritos planetários, e alguns - a frágil e rara minoria - se unem durante a vida em alguns homens. Seres divinos como Gautama Buddha, Jesus, Lao-Tsé, Krishna e uns poucos outros uniram-se permanentemente com seus espíritos - portanto, tornaram-se deuses sobre a Terra. Outros como Moisés, Pitágoras, Apolônio, Plotino, Confúcio, Platão, Jâmblico e alguns santos cristãos, tendo assim se reunido por intervalos, alinharam-se na história como semideuses e guias da Humanidade. Uma vez libertos de seus tabernáculos terrestres, suas almas liberadas, doravante unidas eternamente com seus espíritos, reúnem-se à hoste resplandecente, que está unida numa solidariedade espiritual de pensamento e ação, e que é chamada "a ungida". Daí a afirmação dos gnósticos que, sustentando que Cristos sofreu espiritualmente pela Humanidade, queriam subentender que foi seu Espírito Divino quem mais sofreu.

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