O que significa na realidade o aniquilamento

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:29

P: Ouvi alguns teósofos falando de um fio dourado no qual estão enfiadas suas vidas. Que querem dizer com isto?

T: Os livros sagrados hindus dizem que o que está sujeito à encarnação periódica é o Sutratma, que significa literalmente "alma fio". É um sinônimo do Ego que se reencarna (manas unido a Buddhi), que absorve as recordações manásicas de todas as nossas vidas anteriores. Chama-o assim porque do mesmo modo que as pérolas em um fio, assim estão enfiadas as longas séries de vidas humanas naquele fio. Nos Upanishad, esses renascimentos repetidos são comparados à vida de um mortal, que oscila periodicamente entre o sono e a vigília.

 

P: Isto não me parece muito claro e vou dizer por quê: para o homem que desperta, começa outro dia — mas esse homem é, em corpo e alma, o mesmo do dia anterior; ao passo que, em cada encarnação, há uma mudança completa, não só do invólucro externo, sexo e personalidade, como nas capacidades mentais e psíquicas. Não me parece muito correta a comparação. O homem que desperta recorda-se claramente do que fez na véspera, na antevéspera e até meses e anos antes. Mas nenhum de nós guarda a menor recordação de uma vida anterior ou de qualquer jato ou acontecimento relacionado com ela. . . Posso de manhã ter esquecido o que sonhei durante a noite, mas, sem dúvida, sei que dormi e tenho segurança de que vivi enquanto dormia. Mas que recordação posso ter de minha encarnação passada, até o momento da morte? Como conciliar isto?

T: Algumas pessoas se lembram de suas encarnações passadas, mas estas pessoas são Buddhas e iniciados. Os iogues chamam de sammasambuddha, ao conhecimento da série inteira das próprias encarnações passadas.

 

P: Mas como nós, o comum dos mortais, que não alcançamos o sammasambuddha, poderemos compreender esse caso?

T: Estudando e tratando de compreender com mais exatidão o caráter do sono e suas três classes. Tanto para o homem como para o animal, o sono é uma lei geral e imutável; mas existem diferentes classes de sono, sonhos e visões bem diferenciadas.

 

P: Isto nos distancia de nosso presente objetivo. Voltemos ao materialista que, embora não negue os sonhos — porque dificilmente poderia fazê-lo - - sem dúvida repele a imortalidade e a sobrevivência de sua própria individualidade.

T: E tem razão o materialista, embora não se dê conta disso. Para aquele que não tem a percepção interna, a fé na imortalidade de sua alma jamais poderá se converter em Buddhi-Taijasa. Sempre será simplesmente manas, e para manas somente, não há imortalidade possível. Para poder viver conscientemente no mundo futuro, alguém deve crer primeiramente naquela vida durante sua existência terrestre. Toda a filosofia relativa à consciência e imortalidade post-mortem da alma, está baseada nesses aforismos da Ciência Secreta. O Ego sempre pagou conforme seus merecimentos. Depois da dissolução do corpo, começa para ele um período de completa consciência, um estado de sonhos caóticos, ou um sono inteiramente livre de sonhos, semelhante ao aniquilamento; e estas são as três classes de sono. Se os fisiólogos encontram a causa dos sonhos e das visões na preparação dos mesmos durante a vigília, por que não se pode admitir o mesmo com relação aos sonhos post-mortem? Repito: a morte é um sono. Depois da morte começa a se desenrolar frente aos olhos espirituais da alma uma representação correspondente ao programa aprendido, e que, com muita freqüência, foi composto por nós mesmos; a realização prática das crenças corretas ou das ilusões que nós criamos. O metodista será metodista; o muçulmano será muçulmano, pelo menos por algum tempo, em um paraíso de insensatos, criado segundo o gosto de cada um. Estes são os frutos post-mortem da árvore da vida. Nossa crença ou incredulidade sobre a imortalidade consciente, é naturalmente incapaz de exercer qualquer influência sobre a realidade incondicionada do fato em si, uma vez que existe; mas a crença ou incredibilidade naquela imortalidade como propriedade de entidades independentes ou separadas, não pode deixar de dar cor àquele fato, em sua aplicação a cada uma dessas entidades. Começa agora a entender?

 

P: Creio que sim. O materialista repelindo tudo aquilo que não pode ser provado por meio de seus cinco sentidos, ou pelos arrazoados científicos, baseado exclusivamente nos dados que esses sentidos podem lhe proporcionar, apesar de sua insuficiência; e não admitindo qualquer manifestação espiritual, aceita a vida como a única existência consciente. Portanto, sua vida futura corresponderá às suas crenças. Perderá seu Ego pessoal e submergirá num sono vazio até um novo despertar, não é isto?

T: Quase. Não esqueça a doutrina verdadeiramente universal das duas classes de existência consciente: a terrestre e a espiritual. Sendo esta última habitada pela Mônada eterna, imutável e imortal, deve considerar-se como real; enquanto que o Ego que encarna, reveste-se de invólucros inteiramente diferentes daqueles que levara em suas anteriores encarnações, e nas quais — com exceção de seu protótipo espiritual — tudo está submetido a uma mudança tão radical, que não deixa nenhum rastro.

 

P: Como é isto? Meu "Eu" consciente terrestre pode perecer — não só por um tempo determinado, como a consciência do materialista — mas tão completamente que não deixe nenhum rastro de si?

T: Conforme nos ensina a doutrina, deve perecer por completo, exceto o princípio que, tendo se unido à Mônada, converteu-se em essência espiritual, pura e indestrutível, formando com ela o um na eternidade. Mas em se tratando de um materialista absoluto, em cujo "eu" pessoal jamais se refletiu Buddhi algum, como pode este levar sequer uma partícula daquela personalidade terrestre à eternidade? O "eu" espiritual é imortal; mas só pode conduzir à eternidade aquela parte do eu atual que se fez digna da imortalidade, isto é, só o aroma da flor ceifada pela morte.

 

P: Mas e a flor, ou o "eu" terrestre?

T: A flor, como todas as flores passadas e futuras que brotaram ou brotarão no ramo-mãe (o Sutratma), todas filhas de um mesmo tronco, ou Buddhi, se converterá em pó. Seu presente "Eu", como você sabe, não é o corpo que neste momento está diante de mim, nem mesmo o que eu chamaria manas-Sutratma, mas sim Sutratma-Buddhi.

 

P: Mas isto de forma nenhuma explica por que chama de imortal, infinita e real a vida que sucede a morte, e mero fantasma ou ilusão à vida terrestre, uma vez que até essa vida post-mortem é limitada, mesmo sendo seus limites muito mais amplos que os da vida terrestre.

T: Sem dúvida. O Ego espiritual do homem move-se na eternidade como um pêndulo, entre as horas do nascimento e da morte. Mas se bem que essas horas que marcam os períodos da vida terrestre e da vida espiritual sejam limitadas em sua duração, e mesmo o número daqueles períodos na eternidade, entre o sono e o despertar, a ilusão e a realidade, tem seu princípio e seu fim; por outro lado, o peregrino espiritual é eterno. Assim é que as horas de sua vida post-mortem, quando se encontre o desencarnado frente a frente com a verdade e não com as aparências falazes de suas transitórias existências terrestres (durante o período de peregrinação que chamamos "o ciclo de renascimentos"), em nosso conceito, essas horas são a única realidade. Tais intervalos, apesar de sua limitação, não impedem o Ego de continuar se aperfeiçoando sempre, embora gradual e lentamente, sem desviar-se do caminho que conduz à sua última transformação, em que o Ego — havendo alcançado seu objetivo — converte-se em um ser divino. Estes intervalos e etapas ajudam a conseguir o resultado final, em vez de retardá-lo, e sem eles o Ego divino jamais conseguiria alcançar sua meta. Já usei um exemplo, ao comparar o Ego a um ator, e suas numerosas e distintas encarnações, aos papéis que representa. Você considera esses papéis, ou os trajes apropriados aos mesmos, como constituindo a individualidade do ator?

Da mesma maneira que o ator, o Ego é obrigado a representar, durante o ciclo de necessidade, até chegar ao umbral de Para-nirvana, muitos papéis que o desgostam e molestam. Mas assim como a abelha recolhe o mel de cada flor, deixando o resto para alimento dos vermes da terra, da mesma forma procede nossa individualidade espiritual, quer a chamemos Sutratma ou Ego. Recolhendo de cada personalidade terrestre em que Karma lhe obriga a reencarnar-se, somente o néctar das qualidades espirituais e a própria consciência, forma de todas elas um todo, e surge de sua crisálida, como Dhyan-Chohan glorificado. Tanto pior para aquelas personalidades terrestres, das quais nada se pôde recolher. Seguramente, semelhantes personalidades não podem sobreviver conscientemente a sua existência terrestre.

 

P: Pelo que se depreende do que foi dito, é condicional a imortalidade para a personalidade terrestre. A imortalidade não é por si mesma incondicional?

T: De maneira nenhuma. A imortalidade não pode alcançar o não-existente: para tudo o que existe como sat, ou emana de sat, a imortalidade e a eternidade são absolutas. A matéria é o pólo oposto do espírito, e, sem dúvida, ambos não formam mais que um. A essência de tudo isto, quer dizer, o Espírito, a Força e a Matéria, ou seja, os três em um, não tem fim, como tampouco tem princípio; mas a forma adquirida por esta tríplice unidade durante suas encarnações, sua exterioridade, seguramente não é mais que a ilusão de nossas concepções pessoais. Portanto, somente chamamos de realidade, ao Nirvana e à vida universal, relegando a vida terrestre, inclusive sua terrestre personalidade e até sua existência devakhânica, ao fantasmagórico reino da ilusão.

 

P: Mas neste caso, por que chamar realidade ao sonho e ilusão ao estado de vigília?

T: É simplesmente uma comparação, com o objetivo de facilitar a compreensão do assunto: e sob o ponto de vista dos conceitos terrestres, é muito correta.

 

P: Não posso compreender ainda: se a vida futura está baseada na justiça e na merecida retribuição por todos os nossos sofrimentos terrestres, como é que quando se trata dos materialistas — entre os quais se contam muitos homens realmente honrados e caritativos -- não há de sobrar nada de sua personalidade, exceto o resíduo, o resto da flor murcha?

T: Jamais se disse coisa parecida. Nenhum materialista, por mais incrédulo que seja, pode morrer para sempre, na plenitude de sua individualidade espiritual. O que se disse é que, no caso de um materialista, a consciência pode desaparecer completa ou parcialmente, de forma a que não sobrevivam restos conscientes de sua personalidade.

 

P: Mas isto é o aniquilamento?

T: De forma nenhuma. Uma pessoa durante uma longa viagem de trem pode dormir profundamente e deixar passar várias estações, sem a mais ligeira recordação ou consciência disso; despertar num determinado ponto e continuar a viagem, passando por inumeráveis estações, até por fim chegar ao término. Falei em três classes de sono: o sono sem sonhos, o caótico e o sono tão real que os sonhos parecem realidades completas ao adormecido. Se acredita no último, por que não pode crer no primeiro? Conforme a crença que o homem teve com relação à sua vida futura, e o que dela esperou, assim será o que o aguarda. Quem não esperou vida futura alguma, encontrará um vazio absoluto, semelhante ao aniquilamento, no intervalo entre dois renascimentos.

Precisamente assim é o cumprimento do programa de que falamos — programa traçado pelos próprios materialistas. Mas, como você disse bem, há várias classes de materialistas. Um homem egoísta e perverso que jamais verteu uma lágrima por ninguém — nem por si mesmo — somando à incredulidade uma completa indiferença pelo mundo inteiro, às portas da morte deve perder para sempre sua personalidade. Se essa personalidade carece de laços de simpatia que a unissem ao mundo que a rodeava, e, portanto, sem nada que dar ao Sutratma, resulta que toda relação entre ambos fica rota com o último suspiro. Como não existe nenhum Devakhan para essa espécie de materialista, o Sutratma se reencarnará quase imediatamente. Mas os materialistas que, com exceção de sua incredulidade em nada mais faltaram — apenas deixaram passar uma estação em seu sono —, verão um tempo em que se reconhecerão a si mesmos na eternidade, e em que talvez até se arrependam de ter perdido um só dia, uma só estação da vida eterna.

 

P: Não seria talvez mais correto dizer que a morte é o nascimento a uma nova vida, ou um novo regresso à eternidade?

T: Se lhe agrada, pode dizer assim. Somente não esqueça que os nascimentos diferem; e que há nascimentos de seres que morrem ao nascer e são fracassos da natureza. Aliás, dentro das idéias fixas ocidentais sobre a vida material, as palavras "ser" e "vivente" são inteiramente inaplicáveis ao puro estado subjetivo da existência post-mortem. Precisamente porque os filósofos - com exceção de alguns poucos não lidos pela maioria das pessoas - vêem-se eles mesmos desconcertados para poder traçar um quadro claro e preciso disto, e precisamente porque as idéias ocidentais sobre a vida e a morte são tão estreitas e mesquinhas, eis porque todos se encontram conduzidos, de um lado ao materialismo grosseiro, e de outro, ao conceito ainda mais material de outra vida, formulado pelos espíritas em seu "país de estio" (summer land), onde as almas dos homens comem, bebem, casam-se e vivem num paraíso tão sensual como o de Mahoma, e ainda menos filosófico.

Tampouco são melhores as generalidades dos conceitos dos cristãos sem cultura, senão mais materialistas ainda, se isto for possível; pois com seus anjos incompletos, suas trombetas de metal, suas harpas douradas e seu fogo material do inferno, o céu cristão mais se parece a uma cena de magia em uma pantomima de Natal. A causa da dificuldade que vocês encontram em compreender estas idéias, consiste nesses conceitos mesquinhos. Justamente porque a vida da alma desencarnada, embora possuindo toda a lucidez do real, como sucede em certos sonhos, carece de toda forma grosseira objetiva da vida terrestre, é que os filósofos orientais a comparam às visões durante o sonho.

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