Do próprio sacrifício

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:55

P: O objetivo mais elevado da Teosofia é a justiça igual para todos e o amor de todos os seres?

T: Não, existe outro ainda mais alto.

 

P:  Qual pode ser?

T: O dar aos outros mais que a si mesmo; o próprio sacrifício. Isto foi o que distinguiu tão excelsamente aos maiores mestres da humanidade, tal como Gautama Buddha na História, e Jesus de Nazaré nos Evangelhos. Bastou esse rasgo para lhes conservar o respeito e o agradecimento perpétuo das gerações que lhes sucederam. Sem dúvida dizemos que o próprio sacrifício deve ser praticado com discernimento; e que se semelhante abandono de si mesmo for efetuado sem levar em conta a justiça, cegamente, sem considerar os resultados, freqüentemente pode não só ser em vão o esforço, como prejudicial. Uma das regras fundamentais da Teosofia é a justiça consigo mesmo, considerando-nos como uma unidade da humanidade coletiva e não como um eu pessoal: considerando-nos não mais que os outros, mas tampouco menos, exceto quando, graças ao próprio sacrifício, podemos beneficiar a muitos.

 

P: Pode esclarecer melhor sua idéia através de um exemplo?

T: Existem muitos exemplos na História. A Teosofia considera o sacrifício próprio pelo bem prático de muitos, como superior à abnegação por uma idéia sectária, como por exemplo a de "salvar os pagãos da condenação". Na nossa opinião, o padre Damião (aquele jovem de trinta anos que sacrificou sua vida inteira para aliviar os sofrimentos dos leprosos de Molokai, vivendo dezoito anos somente com eles, sendo no fim atacado pela mesma moléstia, da qual morreu) não morreu em vão. Ele aliviou e proporcionou uma relativa felicidade a milhares de pobres desgraçados. Levou-lhes consolo mental e físico. Derramou um raio de luz na noite escura e terrível de uma existência cuja amargura não encontra paralelo nos anais do sofrimento humano. Era um verdadeiro teósofo e sua memória viverá eternamente conosco. Consideramos esse pobre sacerdote belga incomensuravelmente mais elevado que, por exemplo, aqueles sinceros, mas insensatos e vãos missionários que sacrificam suas vidas nas ilhas dos mares do Sul ou na China. Que bem fizeram? Nas ilhas travaram contato com seres que ainda não estavam aptos a receber verdade alguma; e, quanto à China, trata-se de uma nação cujos sistemas de filosofia religiosa são tão elevados quanto qualquer outro, se seguirem o modelo de Confúcio e demais sábios de sua raça. Morreram vítimas de canibais e selvagens irresponsáveis, ou do fanatismo e do ódio populares; enquanto que se tivessem ido aos casebres de Whitechapel ou outra localidade dessas que param e apodrecem sob o sol brilhante de nossa civilização, cheias de selvagens cristãos e de lepra mental, teriam podido fazer o bem verdadeiro e ter conservado suas vidas para uma causa melhor e mais digna.

 

P: Mas os cristãos não pensam o mesmo?

T: Claro que não, porque agem partindo de uma crença errônea. Pensam que batizando o corpo de um selvagem irresponsável salvam sua alma da condenação. Por um lado, a Igreja - esquece seus mártires, e por outro, beatifica e levanta estátuas a homens como Labro, que sacrificou seu corpo durante quarenta anos apenas em benefício dos imundos insetos que nele se alimentavam. Se tivéssemos meios necessários, levantaríamos uma estátua ao padre Damião, santo verdadeiro e prático, e perpetuaríamos sua memória para sempre, como exemplo vivo de heroísmo teosófico e de compaixão e sacrifício próprio, buddhista e cristão.

 

P: Portanto, considera o sacrifício próprio como um dever?

T: Sim, e o explicamos, mostrando que o altruísmo é uma parte integrante do próprio desenvolvimento. Mas precisamos explicar. Nenhum homem tem direito de deixar-se morrer de fome para que outro possa se alimentar, a não ser que a vida deste seja, de maneira evidente, mais útil a muitos que a sua própria. Mas é seu dever sacrificar seu próprio bem-estar e trabalhar pelos demais, se estes são incapazes de trabalhar por si mesmos. É seu dever dar o que lhe pertence, se ninguém mais aproveita além dele mesmo, e guarda egoisticamente. A Teosofia ensina a abnegação, mas não o sacrifício próprio impulsivo e inútil, nem justifica o fanatismo.

 

P: E como se pode alcançar um estado tão elevado?

T: Levando nossos preceitos à prática, com discernimento. Pelo uso de nossa razão mais elevada, da intuição espiritual, do sentido moral, e obedecendo à opinião do que chamamos "a tranqüila e suave voz" de nossa consciência, que é a de nosso Ego, e fala mais alto em nós que os terremotos e os trovões de Jeová, onde "não está o Senhor".

 

P: Se esses são nossos deveres com relação à humanidade em geral, quais são nossos deveres quanto aos que nos rodeiam?

T: Exatamente os mesmos, com mais os que nascem das obrigações especiais dos laços familiares.

 

P: Então não é certo o que se diz, que entrando alguém na Sociedade Teosófica vai se separando gradualmente de sua mulher, de seus filhos e dos deveres de família?

T: É uma calúnia sem nenhum fundamento, como tantas outras. O primeiro dos deveres teosóficos é o de cumprir o próprio dever quanto a todos os homens e principalmente quanto àquelas pessoas com as quais temos obrigações especiais, ou por tê-las assumido voluntariamente, como são os laços do matrimônio, ou porque o destino nos ligou a elas, como as que devemos a nossos pais ou parentes.

 

P: E qual pode ser o dever do teósofo com relação a si mesmo?

T: Reprimir e vencer ao eu inferior, por meio do superior. Purificar-se interna e moralmente; não temer a ninguém nem a nada, além do tribunal da sua própria consciência. Não fazer jamais uma coisa pela metade, isto é, se acredita fazer uma coisa boa, deve fazê-la aberta e francamente, e se é má, afastar-se dela por completo. É dever de um teósofo aliviar sua carga, pensando no sábio aforismo de Epíteto, que diz: "Não te deixes afastar de teu dever por qualquer reflexão vã que de ti possa fazer o mundo néscio, porque em teu poder não estão suas censuras, e, por conseguinte, não devem importar-te nada".

 

P: Supondo-se que um membro da Sociedade manifeste sua incapacidade para praticar o altruísmo com outras pessoas, fundamentando-se em que "a caridade começa em si mesmo"; e alegando que está demasiado ocupado, ou que é muito pobre para favorecer à humanidade, ou mesmo alguns de seus elementos; quais são suas regras em casos semelhantes?

T: Nenhum homem tem direito de dizer que nada pode fazer pelos demais, sob qualquer pretexto. "Cumprindo seu dever na ocasião conveniente, o homem pode converter-se em credor do mundo", diz um escritor inglês. Um copo de água, oferecido a um viajante sedento, realiza um dever mais nobre e mais digno que dúzias de alimentos dados sem oportunidade a quem possa pagá-los. Um homem que não sinta isto jamais será teósofo; mas, sem dúvida, poderá continuar como membro de nossa Sociedade.  Carecemos de regras para obrigar a nenhum homem a converter-se em teósofo prático, se não deseja sê-lo.

 

P: Então, por que entram na Sociedade?

T: Quem o faz sabe. Nem temos o direito de formar juízos antecipados sobre uma pessoa, ainda que toda uma comunidade se manifeste contra, e direi por quê. Em nossos tempos, a vox populi (pelo menos no que se refere às classes cultas), já não é a vox dei, mas sim a da preocupação, a dos motivos egoístas, e, freqüentemente, a da impopularidade. Nosso dever é semear semente abundante para o futuro, e tratar de que seja boa; não nos deter em averiguar por que temos de fazer assim, nem como e para que vamos perder nosso tempo, uma vez que não seremos nós os que hão de recolher a colheita mais adiante.

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