Da consciência após a morte e após o nascimento

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:28

Da consciência após a morte e após o nascimento[1]

 

P: Se pela regra geral a própria consciência sobrevive à morte, por que há de haver exceções?

T: Nos princípios fundamentais do mundo espiritual não é possível nenhuma exceção. Mas existem leis para os que vêem, e leis para aqueles que preferem permanecer cegos.

 

P: Isto eu compreendo perfeitamente. Neste caso apenas se trata da aberração do homem cego que nega a existência do sol porque não o vê. Mas, depois da morte, seguramente seus olhos espirituais o obrigarão a ver. Não é isto o que está querendo dizer?

T: Nem o obrigará, nem verá nada. Tendo negado com persistência durante a vida, a continuação da existência depois da morte, não poderá vê-la; porque se suas faculdades espirituais foram reprimidas durante a vida, não podem desenvolver-se depois da morte, e continuará cego. Quando você insiste em que deve ver, evidentemente está se referindo a uma coisa e eu a outra. Fala do espírito do Espírito, da chama da Chama (em uma palavra, de Atma), e o confunde com a alma humana, manas. . . Vejo que não me compreende; e tentarei me explicar com toda a clareza possível. O ponto capital de sua pergunta é saber se, em se tratando de um materialista completo, é possível a perda da própria consciência e da própria percepção depois da morte. Não é isto? E eu respondo: é possível. Porque acreditando firmemente em nossa doutrina esotérica que fala do período post-mortem, ou intervalo entre duas vidas ou nascimentos, como de um estado simplesmente transitório, digo: quer seja que o intervalo entre dois atos do drama ilusório da vida dure um ano ou um milhão deles, pode esse estado post-mortem — sem quebrar em nada a lei fundamental — ser precisamente o mesmo que o de um homem em estado de síncope profunda.

 

P: Mas, se acabou de dizer que as leis fundamentais do estado post-mortem não admitem exceções, como pode ser isto?

T: Não digo que admita alguma exceção; mas, a lei espiritual de continuidade só se aplica às coisas verdadeiramente reais. Para aquele que leu e compreendeu o Mundakya Upanishad e o Vedanta-Sara, tudo isso parece muito claro. Direi mais: basta compreender o significado de Buddhi e o dualismo de manas, para entender claramente por que pode o materialista perder a própria consciência depois da morte. Como manas em seu aspecto inferior é o centro da inteligência terrestre, só pode dar aquela percepção do universo que está baseada na evidência dessa inteligência; não pode dar-nos a visão espiritual. A Escola Oriental diz que entre Buddhi e manas (o Ego), ou Iswara e Pragna[2], na realidade não há mais diferença do que a que existe entre um bosque e suas árvores, um lago e suas águas, conforme ensina o Mundakya. Uma centena ou várias centenas de árvores mortas por falta de vitalidade ou arrancadas da raiz, sem dúvida não impedem que o bosque continue sendo um bosque.

 

P: Se entendi bem, nesta comparação Buddhi representa o bosque e Manas-Taijasa[3] as árvores. E se Buddhi é imortal, como pode aquilo que é semelhante ao mesmo Buddhi, isto é, Manas-Taijasa, perder completamente sua consciência até o dia da nova encarnação? Não posso compreender.

T: Não pode, porque mistura uma representação abstrata de tudo, com suas mudanças acidentais de forma. Tenha presente de que se pode dizer de Buddhi-Manas que é incondicionalmente imortal, não se pode dizer de manas inferior, e muito menos de Taijasa, que é meramente um atributo.

Nenhum dos dois, manas nem Taijasa, pode existir separado de Buddhi, a alma divina; porque manas em seu aspecto inferior é um atributo qualificativo da personalidade terrestre, e Taijasa é o mesmo manas, apenas com a luz de Buddhi refletida nele. Ao mesmo tempo, Buddhi, sozinho, seria um espírito impessoal, sem este elemento emprestado pela alma humana que o condiciona e faz dele, neste universo ilusório, como se fosse uma coisa separada da alma universal, durante todo o período do ciclo de encarnação.

Dizendo melhor, Buddhi-manas não pode nem morrer nem perder sua própria consciência una na eternidade, nem a recordação de suas encarnações anteriores, nas quais a alma espiritual e a alma humana estiveram intimamente ligadas. Mas, isto não sucede quando se trata de um materialista, cuja alma humana não só não recebe nada da alma divina, como se nega a reconhecer a existência desta. Dificilmente você poderá aplicar este axioma da imortalidade aos atributos e qualidades da alma humana; pois seria o mesmo que dizer que sendo sua alma divina imortal, é também imortal a frescura de sua face, quando esta frescura, como Taijasa, é simplesmente um fenômeno transitório.

 

P: Não devemos confundir em nossa mente o número com o fenômeno, a causa com seu efeito?

T: Sim; e repito que o resplendor de Taijasa, limitado a manas ou à alma humana só, reduz-se a uma mera questão de tempo, porque depois da morte, a imortalidade, e a consciência convertem-se para a personalidade terrestre do homem, simplesmente em atributos condicionados, já que dependem completamente das condições e crenças criadas pela alma humana durante a vida de seu corpo. Karma trabalha incessantemente; depois de nossa vida, recolhemos somente o fruto daquilo que nós mesmos semeamos nela.

 

P: Se depois da destruição de meu corpo meu Ego some em um estado de inconsciência completa, onde terá lugar o castigo pelos pecados cometidos durante minha vida passada?

T: Nossa filosofia ensina que somente em sua próxima encarnação o Ego encontra o castigo kármico. Depois da morte, apenas recebe o prêmio dos sofrimentos imerecidos que experimentou durante sua encarnação passada[4]. Todo o castigo depois da morte - - até para um materialista - - consiste, portanto, em não receber recompensa alguma e na perda total da consciência da própria felicidade e descanso. Karma é filho do Ego terrestre, o fruto das ações da árvore que constitui a personalidade objetiva visível para todos, assim como o fruto de todos os pensamentos e até dos motivos do "Eu" espiritual, mas Karma é também a mãe carinhosa e eterna que cura as feridas infligidas por ela durante a vida anterior, sem torturar aquele Ego, causando-lhe novos sofrimentos. Se se pode dizer que não existe nenhum sofrimento - - mental ou físico — na vida de um mortal, que não seja fruto e conseqüência direta de algum pecado cometido em uma existência prévia; por outro lado, o homem não conservando a menor recordação disto em sua vida atual, considera que não merece tal castigo e que está sofrendo por um crime que não é seu. Basta isso para que a alma humana tenha direito ao consolo, descanso e bem-aventurança mais completos, em sua existência post-mortem.

Para nossos Egos espirituais a morte sempre se apresenta como salvadora e amiga. Para o materialista, que não foi mau apesar de seu materialismo, será o intervalo entre as duas vidas semelhante ao sono tranqüilo e não interrompido de uma criança, ou seja, inteiramente livre de sonhos ou cheio de imagens de que não tem percepção definida; enquanto que para o mortal comum, será um sonho tão vivo e animado como a própria vida, cheio de felicidade e visões reais.

 

P: Então o homem pessoal continuará sempre sofrendo cegamente as penalidades em que o Ego incidiu?

T: Não de todo. No momento solene da morte, todo homem — mesmo quando a morte for repentina — vê sua vida passada traçada inteira ante seus olhos, em seus menores detalhes. Durante um rápido instante, o Ego pessoal funde-se com o Ego individual onisciente, formando uma unidade. E basta este instante para revelar toda a cadeia de causas postas em ação durante sua vida. Contempla-se e compreende então a si mesmo, tal qual é, desprovido de toda adulação e ilusões próprias. Lê em sua vida, como o espectador que dirige seu olhar para o mundo que está abandonando; e então sente a justiça de todos os sofrimentos que experimentou.

 

P:  Sucede isto a todo mundo?

T: Sem nenhuma exceção. Ensinam-nos que homens muitos santos e bons não apenas vêem a vida que estão deixando, como até várias vidas anteriores, nas quais se produziram as causas responsáveis por eles na vida que nesse momento abandonam. Reconhecem a Lei de Karma em toda sua majestade e justiça.

 

P: Existe algo correspondente a isto antes do renascimento?

T: Sim. Assim como o homem na hora da morte tem uma visão retrospectiva profunda da vida que levou, assim também o Ego, no momento de renascer na terra, despertando do estado de Devakhan, tem uma visão previsora da vida que o espera, e considera todas as causas que a ela o levaram. Dá-se conta e vê o futuro porque entre o Devakhan e o renascimento, o Ego recupera toda sua consciência manásica, e, por um momento, volta a ser o Deus que era antes de que, em cumprimento da lei kármica — desceu pela primeira vez na matéria e encarnou-se no homem: O "fio de ouro" contempla todas as suas "pérolas" e não perde nenhuma delas.



[1] Algumas partes deste capítulo e do anterior foram publicadas na revista Lúcifer, sob a forma de um "Diálogo sobre os Mistérios da Vida Futura", no número de janeiro de 1889. O artigo não estava assinado, como se fosse escrito pelo editor, mas era da autora do presente volume.

[2] Iswara é a consciência coletiva da Deidade manifestada, Brahma, isto é, a consciência coletiva da Hoste dos Dhyan-Chohans (veja Doutrina Secreta); e Pragna é a sabedoria individual destes.

[3] Taijasa significa o radiante, em virtude de sua união com Buddhi; isto é, manas, a alma humana, iluminada pela radiação da Alma divina. Por conseguinte, Manas-Taijasa pode ser descrita como a mente radiante; a razão humana iluminada pela luz do espírito; e Buddhi-Manas é a revelação do intelecto divino mais o intelecto e a própria consciência humana.

[4] Alguns teósofos discordaram desta frase, mas as palavras são do Mestre, e seu sentido unido à palavra "imerecidos", é o que foi dado antes. No folheto número 6, da T.P.S. (Sociedade Teosófica de Publicações), empregava-se uma frase com a mesma idéia, de que depois se fez uma crítica em Lúcifer. A palavra era "desgraçada" e se prestava à crítica que se fez dela; mas a idéia essencial era que os homens sofrem freqüentemente por efeito de ações consumadas por outros; efeito que não faz parte essencialmente de seu próprio Karma, e, como é natural, merecem a compensação desses sofrimentos.

 

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