Do mistério do ego

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:39

P: Advirto que na citação feita anteriormente do Catecismo Buddhista há uma divergência que gostaria de ver explicada. Diz ele que os skandhas — inclusive a memória — mudam a cada nova encarnação, e nos assegura que o reflexo das vidas passadas "deve sobreviver", e, segundo nos dizem, estão inteiramente integradas pelos skandhas. Neste momento não vejo claramente o que sobrevive e desejo saber. O que é? Tão somente aquele "reflexo", são esses skandhas, ou é sempre o mesmo Ego, o manas?

T: Acabo de explicar que o princípio que reencarna, ou o que chamamos de homem divino, é indestrutível através da vida do ciclo: indestrutível como entidade que pensa e até como forma etérea. O "reflexo" não é mais do que a recordação espiritualizada, durante o período devakhânico da ex-personalidade do sr. A. ou da sra. B., com que se identifica o Ego durante aquele período. Como este período devakhânico não é mais que a continuação, por assim dizer, da vida terrestre, o apogeu em série contínua dos poucos momentos felizes da passada existência, o Ego há de se identificar, ele mesmo, com a consciência pessoal dessa vida, se é que restará algo dela.

 

P: Isto significa que o Ego, apesar de sua natureza divina, passa cada período entre duas encarnações em um estado de escuridão mental ou de extravio passageiro.

T: Você pode dar a apreciação que quiser. Acreditando, como cremos, que fora da Única Realidade, tudo o mais não passa de uma ilusão transitória, inclusive o universo, não o consideramos como extravio, mas sim como uma conseqüência ou desenvolvimento muito natural da vida terrestre.

O que é a vida? Um conjunto de experiências variadíssimas, de idéias, emoções e opiniões, que se modificam e mudam diariamente. Durante nossa juventude geralmente nos entusiasmamos por um ideal, por algum herói ou heroína, que tratamos de imitar e ressuscitar; alguns anos mais tarde, quando o frescor de nossos sentimentos desvaneceu-se, somos os primeiros a rir de nossas fantasias. E, sem dúvida, existiu um dia em que identificamos tão completamente nossa própria personalidade com a do ideal de nossa imaginação, que uma fundiu-se na outra. Pode-se dizer de um homem de cinqüenta anos que é o mesmo ser de quando tinha vinte? O homem interno é o mesmo, mas a personalidade externa transformou-se e mudou por completo. Você chamaria também de extravios a estas mudanças da mente humana?

 

P: E como vocês as chamariam? E, especialmente, como explicariam a permanência de um e a mutabilidade da outra?

T: Temos nossa doutrina, e para nós não há dificuldade. A chave está na dupla consciência de nossa mente, e também na dupla natureza do "princípio" mental. Existe uma consciência espiritual, a mente manásica iluminada pela luz de Buddhi, que percebe subjetivamente as abstrações; e há uma consciência sensível (a luz manásica inferior), inseparável de nosso cérebro e sentidos físicos. Esta última consciência é dominada pelo cérebro e pelos sentidos físicos, e como depende deles, deve desvanecer-se e morrer, como é natural, quando desaparecem o cérebro e os sentidos físicos. Somente a primeira classe de consciência, cuja raiz nasce na eternidade, é a que sobrevive e vive eternamente, e por conseguinte, é a que pode considerar-se imortal. Todo o resto são ilusões passageiras.

 

P:  O que entende realmente por ilusão neste caso?

T: Foi muito bem descrito no estudo sobre o "Eu Supremo" que vimos há pouco. Seu autor se expressa nos seguintes termos:

"A teoria que examinamos agora (a mudança de idéias entre o Eu Superior e o eu inferior), harmoniza-se perfeitamente com o conceito de que este mundo em que vivemos é um mundo fenomenal de ilusão, sendo por outro lado os planos espirituais da natureza, o mundo numeral, ou plano da realidade. Essa região da natureza em que a alma permanente está arraigada, é mais real que esta, onde suas efêmeras flores aparecem por breve espaço de tempo para murchar e morrer, enquanto a nova planta recobra energia para dar vida a outra flor. Supondo-se que somente as flores fossem perceptíveis aos sentidos comuns, e que as raízes existissem em um estado da natureza intangível e invisível para nós, os filósofos que em semelhante mundo adivinhassem que existiam coisas chamadas raízes em outro plano de existência, poderiam dizer das flores: "Estas não são as plantas verdadeiras; relativamente não têm importância; são puros fenômenos ilusórios do momento".

Isto é o que quero dizer. O mundo em que brotam as flores transitórias das vidas pessoais não é o mundo permanente; e sim aquele em que encontramos a raiz da consciência, essa raiz que se acha fora de toda ilusão e vive na eternidade.

 

P:  Que entendem por "a raiz que vive na eternidade"?

T: Refiro-me à entidade inteligente, ao Ego que encarna, quer o consideremos como um anjo, um espírito, ou uma força. De tudo quanto conhecemos por meio de nossas percepções sensíveis, somente o que nasce diretamente daquela raiz invisível superior, ou está ligado a ela, pode participar de sua vida imortal. Daí que todo pensamento, idéia e aspiração elevados da personalidade, procedentes dessa raiz e alimentados por ela, há de converter-se em permanente. Enquanto a consciência física deve desaparecer, sendo esta uma condição do princípio sensível, mas inferior (Kama-rupa ou instinto animal, iluminado pelo reflexo manásico inferior, ou alma humana). O que manifesta atividade enquanto o corpo dorme ou está paralisado é a consciência superior; e nossa memória registra só que de um modo débil e incorreto, por agir automaticamente, essas experiências que, freqüentemente, nem mesmo ligeiramente ficam impressas nelas.

 

P: Mas como se explica que manas — apesar de o chamarem Nous — um "Deus", seja tão débil durante suas encarnações que permaneça vencido e prisioneiro de um corpo?

T: Poderia responder com a mesma pergunta e dizer: "Como é que aquele a quem consideram como o Deus dos Deuses e o Único Deus vivo, é tão débil que permite ao mal (ou ao Diabo), que possa vencê-lo assim como a todas as suas criaturas, tanto enquanto estava no céu, como quando estava encarnado sobre a terra?" Seguramente você vai retrucar que "isto é um mistério, e nos é proibido indagar os mistérios de Deus". Como nossa filosofia religiosa não nos proíbe, respondo sua pergunta dizendo que, exceto no caso de descer um Deus à terra como um Avatara, todo princípio divino há de se ver sujeito e paralisado pela turbulenta matéria animal. A heterogeneidade sempre vencerá a homogeneidade sobre este plano de ilusões; e quanto mais se aproxima uma essência à homogeneidade primordial que é seu princípio-base, mais difícil lhe é impor-se na terra. Os poderes espirituais e divinos encontram-se adormecidos em todo ser humano; e quanto mais ampla for sua visão espiritual mais poderoso será seu Deus interno. Mas poucos são os homens capazes de sentir a esse Deus. Geralmente assinalamos limites em nosso pensamento à Deidade, como feito de nossos primeiros conceitos sobre ela, arraigados em nós desde a meninice. Por estas razões é tão difícil compreender nossa filosofia.

 

P: E esse nosso Ego é por acaso nosso Deus?

T: De modo nenhum. "Um Deus" não é a Deidade universal, mas apenas um resplendor do oceano único do Fogo Divino. Nosso Deus interno, ou "nosso Pai Secreto", é o que chamamos o "Eu Supremo", Atmã. Nosso Ego que se encarna foi um Deus em sua origem, como o foram todas as emanações primitivas do Princípio Uno Desconhecido. Mas desde sua "caída na matéria", necessitando encarnar-se através do ciclo, desde seu princípio a seu fim, já não é um Deus livre e feliz, mas sim um pobre peregrino que tenta recuperar aquilo que perdeu. Posso responder mais detalhadamente, repetindo o que disse sobre o Homem Interno em Ísis sem Véu (volume II, pág. 593, ed. inglesa):

"Desde a mais remota antigüidade, a humanidade em conjunto, sempre esteve convencida da existência de uma entidade pessoal espiritual dentro do homem físico. Esta entidade interna era mais ou menos divina, conforme sua proximidade à coroa... Quanto mais íntima é a união, mais agradável e puro é o destino do homem, menos perigosas as condições externas. Esta crença não é fanática nem supersticiosa, mas sim um sentimento instintivo, constante, da proximidade de outro mundo espiritual e invisível que, embora subjetivo para os sentidos exteriores do homem é perfeitamente objetivo para o Ego interno. Acreditava-se também, que existem condições externas e internas, que afetam à determinação de nossa vontade sobre nossos atos. Repelia-se o fatalismo, por que ele implica numa conduta cega de um poder ainda mais cego. Mas se acreditava no destino ou Karma, pois que o homem - - tal como a aranha — tece fio por fio desde o nascimento até a morte, e esse destino é guiado por aquela presença, que alguns chamam de anjo da guarda, ou por nosso homem astral interno mais íntimo, que freqüentemente é o gênio do mal para o homem de carne (ou a personalidade). Ambos guiam o homem, mas um dos dois há de prevalecer; e desde o princípio da invisível luta, a severa e implacável lei de compensação (e retribuição), intervém e continua seu curso, seguindo com fidelidade as flutuações (do conflito). Concluída a última trama, fica o homem envolto na rede que ele mesmo teceu, e então se encontra sob o império desse destino forjado por ele mesmo. Então o destino o fixa, qual concha inerte à rocha imóvel, ou o arrasta como uma pluma no torvelinho produzido por suas próprias ações".

Tal é o destino do homem, o verdadeiro Ego, nãp o autômato, a Casca a quem emprestam esse nome. Dele depende chegar a converter-se num vencedor da matéria.

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